Coração das Trevas – #174 – Quarentena 3

por | set 8, 2020 | Leituras da Quarentena, Resenhas

Um rio longo, meu segundo livro do Conrad, textos de apoio mais que magníficos e um encontro reflexivo como sempre em Coração das Trevas nesta edição da Antofágica

Antes de começar, mais uma leitura dessa que está sendo feita nesse caos quarentênico! HAHA

Além dessas leituras, vocês conferem aqui as resenhas de Enraizados e Homens Elegantes e gravamos podcasts sobre as Leituras do Clube do Livro do Multiverso X, neste caso: Araruama O Livro das Sementes (1); Ninguém Nasce Herói; Um estudo em Charlotte; e  Pátria – A Lenda de Drizzt. Nem todos pro Clube, como no caso de Pátria!

Tenho falado mais sobre as leituras lá no cast, então é uma boa pra quem curte ouvir um bate papo que perpasse vários pontos de vista de pessoas diversas!

Sem mais delongas fica o lembrete da campanha do Catarse que está aí correndo, venham ajudar Cummulus a existir!! <3

Sinopse: Uma das mais importantes obras da literatura mundial e inspiração para o filme Apocalypse Now, Coração das Trevas tem nova tradução, de José Rubens Siqueira, 60 ilustrações do artista plástico Cláudio Dantas e textos extra de Ana Maria Bahiana, Christian Dunker e Silvio Almeida”Não quero aborrecer muito vocês com o que aconteceu comigo.”, diz o marinheiro Marlow aos colegas de navegação enquanto anoitece no Tâmisa. Ele começa então a relatar sua experiência no período em que esteve à frente de um barco a vapor em um rio na África.Ao chegar no Congo, Marlow conta ter recebido a missão de resgatar Kurtz, um brilhante comerciante que aparentemente havia perdido a sanidade. A viagem rio acima em busca desse misterioso homem é acompanhada de uma jornada pessoal para dentro das trevas e da loucura que habitam dentro de si.A história de Marlow e Kurtz já foi adaptada diversas vezes para outras mídias — cinema, ópera, e até para rádio, pelas mãos de Orson Welles. Mas sua adaptação mais famosa é o filme Apocalyse Now, de Francis Ford Coppola, que transpõe a narrativa do colonialismo africano para a guerra do vietnã.Esta nova edição conta com ilustrações de Cláudio Dantas, textos de Ana Maria Bahiana e Christian Dunker e uma tradução inédita do renomado tradutor José Rubens Siqueira, responsável por verter para a língua portuguesa livros como Desonra, de J.M. Coetzee e Grandes Esperanças, de Charles Dickens.

E foi.

Meu segundo livro do Conrad lido! O primeiro foi há bastante tempo, quando li Vitória, que já apareceu por aqui láa em 2017. Praticamente em outra vida. haha

Vitória já foi uma apresentação ótima à escrita de Conrad e essas literaturas que gostamos de chamar de universais. Entendo uma história como universal quando cenários, épocas, contextos, servem como pano de fundo pra questões que são humanas. Sejam sentimentos, conflitos, questões existenciais, tudo que sobra quando se tira as vestimentas que cobrem as coisas. Tudo que sobra é o que faz você ler algo do Brecht que se passa num cenário completamente diferente do seu e entender, se enxergar, enxergar a humanidade. Entender o que ele quer dizer com aquele teatro.

Havia entre nós, como eu já disse em algum lugar, o elo do mar. Além de manter ligados nossos corações por longos períodos de separação, tinha o efeito de nos fazer tolerantes com as lorotas — e até mesmo com as convicções — uns dos outros.

Coração das trevas, Joseph Conrad

São histórias que vão atravessando várias fronteiras de tempo e continuando a ser chamadas de clássicos.

Vitória já foi uma leitura assim e Coração das Trevas também.

A imutabilidade dos arredores em costas estrangeiras, os rostos estrangeiros, a cambiante imensidão da vida, passam deslizando, veladas não por uma sensação de mistério, mas por uma ignorância ligeiramente desdenhosa; pois não há nada misterioso para um homem do mar a não ser o próprio mar, senhor de sua existência e tão inescrutável quanto o Destino.

Coração das Trevas, Joseph Conrad

Essa edição está lindíssima, fiquei com vontade de dar uma olhada na versão impressa também, mas o que a torna mais incrível em si são os textos que vem com ela.

Quando falamos de clássicos, eu sinto que nas leituras que fiz até hoje de livros conceituados ou o que seja, que não compensa ler sem ter comentários junto. Sem ter aquele prefácio que nos prepara pra um mergulho, que alerta, que convida a um pensamento anterior à leitura em si. Ou então que tenham aqueles textos comentados depois da leitura, com pessoas que sabem do que estão falando e que tenham pontos de vista que possam expandir e nos fazer retornar à leitura com outros olhos.

O curso do rio se abria diante de nós e depois se fechava atrás, como se a floresta tivesse avançado com tranquilidade sobre a água para bloquear o caminho de nossa volta. Penetramos mais e mais fundo no coração das trevas. Era muito silencioso lá.

Coração das Trevas, Joseph Conrad

Eu gosto muito quando pego uma edição que tenha isso! Minha leitura de Laranja Mecânica, por exemplo, só foi o que foi por conta dos textos ao final na edição de 50 anos.

Nesse caso isso também aconteceu, eu comecei a ler sem ver sinopse nem nada, só fui pra leitura. Aí tem um prefácio curtinho que já te dá um pré-aviso do que vai rolar.

A experiência de ler Coração das trevas é, como dito antes, a de olhar por uma janela, que nos permite ver o abismo da mente humana; o medo do desconhecido; a violência e barbárie que o homem é capaz de infligir mesmo em nome da civilização; como isso era, e é, normalizado; como criamos imagens em nossas cabeças em vez de entender a realidade e sua complexidade.

Prefácio, O Coração das Trevas

O texto incrível do Conrad no meio, eu não sabia que estava com saudade da escrita dele até sentar pra ler esse livro. HAHA A tradução de José Rubens Siqueira está incrível demais.

Acompanhar a visão de Marlow sobre o que acontece no Congo, enquanto atravessam o rio, os contatos com os colonizadores, a crítica à visão imperialista que o próprio Conrad constrói na vida real e através do personagem, é tudo muito aflitivo e bem feito. A narração de Marlow que atravessa mais de uma história dentro da outra tem essa linha tênue da mente do contador de histórias lembrando do passado numa madrugada escura.

Mas esses sujeitos não eram grande coisa na verdade. Não eram colonizadores; a administração deles era mera exploração, mais nada, eu acho. Eram conquistadores e para isso é preciso apenas força bruta, nada para se orgulhar uma vez que a sua força é um mero acidente que brota da fraqueza dos outros. Eles agarravam o que podiam só porque estava ali. Era apenas roubo com violência, agravado por assassinato em massa, e homens partindo em direção a isso às cegas, como é bem apropriado aos que enfrentam a escuridão.

Coração das Trevas, Joseph Conrad

Os retratos são aflitivos e metafóricos quando se comenta a questão da escuridão, do Sr. Kurtz, de tudo. Da possível amarração com a loucura. Tudo está lá, da mesma maneira que estava no outro livro que li dele.

Por mais aflitivo que seja ler alguns (vários? todos?) momentos do relato, é uma leitura apaixonante justamente pela escrita.

Uma vez, quando várias doenças tropicais tinham derrubado quase todos os “agentes” da estação, ele falou: “Quem vem para cá não pode ter entranhas.” E selou essa declaração com aquele sorriso, como se fosse uma porta para a escuridão que tinha sob sua guarda.

Coração das Trevas, Joseph Conrad

E aí que eu chego nos textos finais dessa edição. São 3. Um de Ana Maria Bahiana, um de Christian Dunker e um de Silvio Almeida.

São 3 pessoas diferentes com comentários sobre aspectos diferentes da leitura, e foi pra mim fechar tudo com chave de ouro.

Christian traz a relação entre colonização e loucura, fala sobre as metáforas aparentes, a questão da dualidade de várias personagens e do contexto em que o livro foi escrito. Já Ana traz algumas dualidades sobre as adaptações, e o atravessamento dessa história para outros meios e mídias ao longo do tempo, também ressaltando essa ambiguidade de todas as personagens que Conrad traz nos livros, não tem visões maniqueístas envolvidas quando se fala de quem é bom e moral nessa história, são pessoas complexas (talvez nem tanto quando falamos de alguns colonizadores k k k ). E aí tem o texto de Silvio Almeida.

Ele já começa dissecando toda a construção racista filosófica do ocidente, dessa “terraformação” (eu amei esse termo ser usado dessa forma!!) das colônias para serem ferramentas, tanto as pessoas quando o espaço físico. O quão sutil é essa manipulação e construção do mito da selvageria, do primitivismo não branco, de tudo que pode ser construído pra supremacia masculina e branca. E do quanto Conrad mesmo não era consciente disso ao fazer esse livro. Ele critica sim a questão imperialista, mas de fato, tanto em Vitória quando ele retrata o personagem asiático, quanto em Coração das Trevas ao retratar africanos, ele não percebe as correlações de não encarar as pessoas não brancas como humanas, ele as encarando como não capazes de comunicação e estão mais perto desse primitivismo. É um texto incrível que traz nuances muito boas sobre os panos de fundo que estavam em ação na época de Conrad, e ainda na nossa, e mostra os limites também de alcance e de leitura que devem ser feitos ao ler um livro desses.

Já que é sim um clássico, mas um clássico que sempre precisa ser contextualizado por ter sido escrito por alguém inserido em sua época, e, assim, também com seu pano de fundo de críticas que não foram feitas, mas deveriam. Ainda mais com as reflexões que fazemos agora.

Coração das trevas foi escrito no século XIX, no auge das empreitadas coloniais europeias. E apesar das críticas aos horrores do imperialismo — particularmente o belga, que sob o comando de Leopoldo II massacrou dez milhões de congoleses — percebe-se no livro a reprodução do medo da África produzido pela máquina de delírios e fantasmagorias de que se serve o imperialismo (…).

Coração das Trevas, texto de Silvio Almeida ao final.

Enfim, recomendo demais a leitura! Voltar pra Conrad foi voltar pra uma narrativa muito confortável de ouvir histórias, e com textos tão fabulosos servindo de apoio a obra ficou ainda mais incrível.

 

Coração das Trevas
Autoria: Joseph Conrad, com ilustrações de Cláudio Dantas
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Antofágica
Páginas: 288

 

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